9 de dezembro de 2024



19 de novembro de 2024

Zeca Afonso e os Séculos

Repudio o conceito de vanguardismo e sucessivas tentativas de o justificar, mas, usando-o, ao menos que se o atribua a coisas realmente irrepetíveis por surgidas e existindo naquilo a que podemos chamar irreal — não por vidência, clarividência ou adiantamento face ao que há, mas por não se achar em qualquer parte do tempo.

É no Zeca Afonso em que penso. Ser-me-ia impossível explicar o que faz deste compositor um dos maiores, ao lado de Mozart, Stravinsky ou McCartney. Periscópios neurais ou alquímicos terão em comum para descobrirem com tal claridade a linha turva do horizonte. Será uma intuição «intemporal» ou «universal», como se escutassem em si mesmos a demais humanidade, a que existe, a que virá? Na ânsia de haver o que se responda, dizemo-los profetas ou videntes, e, por excesso (ou inabilidade) de pensar o que não somos, imaginamo-los lacerados pela solidão da «genialidade», anjos caídos na selva de nós. Mas o Zeca Afonso, como todos os génios, não foi realmente génio: ou, pelo menos, não o foi sozinho: nele consolidaram-se as sensibilidades afinadas de um José Mário Branco ou de um Fausto Bordalo Dias, que escutaram com os ouvidos de Orfeu a intuição cantante de um homem, transfazendo-o na severa possibilidade da reprodução. Aquela estranha solidão, que é afinal simples música, não se mata, mas alivia-se.

8 de novembro de 2024

As leis obscurecem o pensamento, lembram as horas contidas em ostensórios imaginosos — a liminaridade oposta à mesma liminaridade — a espera que se detém na espera de outra espera, porém distintamente opaca, o bastante para que o mundo se refaça em nós e a longevidade se torne branca como pó das estrelas.
«Lamento tão pouco livro para tanto tempo» — li assim a dedicatória mais ou menos ilegível de uma coletânea do Eugénio de Andrade oferecida a Herberto Helder, em depósito na Biblioteca Palácio de Galveias. Os manuscritos têm essa qualidade enfabuladora do mistério, como se uns quantos caracteres crípticos contivessem a largura do universo. A incorreção da leitura, porém, não lhes retira beleza.

4 de novembro de 2024

Foram imagens que são imagens e que agora doem por não serem as mesmas, se assim posso veicular o suposto sentido da tragédia. E quem chora? Quem ri? Quem concatena vestígios na passagem do tempo?

8 de outubro de 2024

 Excerto de «Turista Clandestino», in Tautologias.

E no centro de cada quarto, no centro do universo inteiro, permaneci a ensaiar a agrura do silêncio monástico. O isolamento. A dúbia doçura da paz. Habitei cada um, não sei quanto tempo, a pensar muito, não sei em quê, talvez na insuficiência do pensamento, ou no seu excesso. Pensei muito pouco. Que se pensa num convento quando já não se considera rezar? A que inevitável incompletude se está votado quando os séculos se nos atravessam sem ordem e a nossa pequenez já não advém da desmedida de Deus mas de nos vermos sem ele, sem a sua medida, sem o seu totalitário mas finito reino? E ali, perdido, era como se na convicção da minha descrença se reunissem todas as palavras, todo o silêncio, e nessa mútua aniquilação eu apenas me pudesse encontrar absoluto, já sem voz, corpo ou vida. Inexistente.

6 de junho de 2024

A intolerância não principia nem termina com a negação do diverso. A negação é a expressão fatal, mórbida. Ódio, sim, e, a montante, o medo, também sim. Também já se sabe do estatuto, do reacionarismo, do poder: a obtusa sensação de controlo do real, mas também do irreal em permanente recriação, em profundo devir. Não se pense porém que a intolerância pensa pouco, porque ela é exatamente feita do mais extremo dos pensamentos: obsessão. É um vórtice que vai engolindo continuamente a mesma coisa, a mesma ideia e, desse modo, alimenta-se da mais superna das pobrezas. Em redor o espaço, o tempo, os outros, são inconcebíveis. Estão sem que existam, sem que pensem, sem que escolham. A intolerância é chegar ao fim primeiro e de modo exclusivo. E aí, aonde mais ninguém é capaz de chegar, a luz do progresso fulge nas suas costas, porque defronte vê tão-só o negro vácuo de si mesma.

6 de maio de 2024

Excerto de «Ponto de Equilíbrio» in Tautologias:

O Sr. Lopes não bebe antes das cinco, o que é terrível porque cala a sobriedade com um ininterrupto falatório. Hoje tem tentado mais para o Gabarito, dono do estabelecimento, que, talvez por ter deixado a bebida faz uns meses, lhe poderá parecer mais disponível. Mas é pobre princípio conceber que a renúncia do ébrio o torna logo atentamente sóbrio, particularmente quando deslocou o vício para outro vício, que é o caso, a julgar pelo quanto conversa com os corpos despidos de uma revista — é daqueles tipos que com os lábios desenha o movimento das palavras obscenas que não diz, ficando em espuma seca na fímbria dos lábios.

5 de abril de 2024

Infinitude. As palavras comportam essa extremada perseguição do extremo (p. ex., tudo, nada, até o próprio infinito) permanecendo a todo o momento palavras. Pois elas é que são absolutas. Integram em si o limite — um fim. Creio por isso que a infinitude, que acicata o espírito artístico e criador, reside no próprio símbolo que a enuncia. No visível, cabe o invisível. É, pois, em volta que está o vácuo inavegável, a real infinitude, aquele espaço de coisa nenhuma e que nenhum pensamento pode pensar. Se existe ou não, é igual.

17 de dezembro de 2023

Vitalina Varela (2019) Dir. Pedro Costa

Filme quieto, em sentido duplo: fotográfico e pensado. Se a dor se revelasse em imagem seria a da escuridão que circunda o pensamento, em que a mínima luminosidade, a débil figura, o grave contorno, significam a réstia de vida e de esperança — a luz minga ou cresce? Não é estranho que o filme busque a estética do sonho, do pesadelo ou da memória, porque é precisamente nesse segundo mundo em que aparece decantada a miséria e, porque a há sempre, a beleza.


21 de julho de 2023

Unir o sentir à manufactura. De que outro modo se pode fazer arte? Aborrece-me que muita gente se ponha em frente da sua própria obra com a convicção da sua importância. No limite só o contrário é suportável porque um autor deve dar-se ao que possibilita vir ao mundo precisamente porque só ele o pode possibilitar. Usar da obra como adereço ou halo que o adorne é reduzir-se à obra, nula e alheia, de que se apropria. 

17 de junho de 2023

Sociedade Civil de ontem na RTP2 sob o mote “Ser bom, chega?” (no sentido prático-profissional, não moral). Nesta discussão, avieram a educação infantil com a performance profissional como se uma levasse à outra e como se ambas reflectissem o mesmo objecto. Conclusão obtusamente uníssona dos partícipes: não é preciso ser bom para ser bom; a pressão para se ser bom é má porque desmotiva o impulso ou vontade para se ser bom, a coacção tem de ser portanto “apenas” tácita, porque tem de ser a criança ou o trabalhador a “querer” ser bom; se não quiser ser bom, deve-se-lhe mostrar que tem de ser bom, sem qualquer coacção, naturalmente.

2 de junho de 2023

Onde e quando nos pomos no fim mais último? — morrer é morrer-se num lugar e numa data, um concreto mítico que em nós vamos incorporando. O fecho da narrativa contada, o começo da narrativa eternamente emudecida: a da terra, a do corpo, a do pó.

29 de maio de 2023

A «magia» «naif» (ambos com ásperas aspas) deve-se a alguma impensabilidade (aqui sob uma lente foucaultiana —  da ordem pelas formas). O vazio da técnica não adquirida é preenchida pelo impulso do saber e do fazer, enquanto parcelas ainda não aglutinadas em saber-fazer.

Menor mediação da segurança hierárquica do conhecimento.

26 de abril de 2023

Fomos ver o filme Oito Montanhas, baseado num livro do escritor italiano Paolo Cognetti. Tentei pensar no que dizer, mas as palavras ficaram lá em cima, no refúgio subterrado do pensamento.

1 de abril de 2023

R. Barthes, a propósito do seu teatro contemporâneo sumariza que o estilo é uma técnica de evasão. E é quase inevitável a pouco obrigatória analogia com a própria humanidade (com o ser humano, especificamente), que é feita de corpo e de espírito. O corpo pode ser fachada, mas nunca humilde ou honesto quando nele não transpira a verdade do que contém. Tenho assistido com cada vez mais clareza a facilidade (e a imperatividade) com que alguém pode migrar de um corpo para outro. Claro, os mais cuidadosos tecem esmeradas justificações ao abandono da antiga carcaça, ou para se eximirem de culpas e abrir espaço ao recálculo da sua situação. Se se pode pensar num modo não-sistémico, a validação dos outros acaba por ser secundária face ao desejo de harmonia interior-exterior, a uma paz consigo mesmo.

19 de março de 2023

Pinguim

Os convivas indagavam antros interiores com a mesma implacabilidade com que a música das palavras constelava a mais inexprimível alegria. Espaços estendiam-se em busca de outros espaços, ardores estendiam-se em busca da partilha e da solidão. É por isso que certas coisas, livres e transcendentes, ocorrem em cheio na impossibilidade de as situar. Às duas da manhã, cantávamos o Cançoninho todos juntos, em círculo, de braços pousados nos ombros dos sobreviventes da madrugada. Mesmo se virgens daquelas andanças, podíamos ir até lá, devagar, a passo reticente de intruso, alguém levantava o braço para nos abrir espaço e encaixávamos no elo humano a fingir as palavras que não sabíamos. As iminentes gargalhadas não se distinguiam da comoção. Como não sei. Algum segredo impartilhável todos ali partilhavam. Já não íamos ao Pinguim há uns anos. O que reencontrámos ontem ? A irrepetição? É inútil perseguir a memória. Talvez o modus litúrgico venha cedendo ao formalismo. Talvez a poesia venha envelhecendo junto com o resto. O vinho, porém, permanece indecifrável dentro do seu igual. Ao menos o vinho.

14 de março de 2023

A Pior Pessoa do Mundo (2021) Dir. Joachim Trier

Contribui para a coerência da problemática feminina ao desdobrar a discussão para longe do feminismo enquanto posição política. Porque é preciso mais discurso, naturalmente, não sobre a luta da mulher contra o homem, que é uma binariedade sem compromisso possível, mas sobre a mulher contra si mesma, enquanto membro singular de um colectivo, feito de homens, mulheres e fantasmas.

8 de março de 2023

Leio Poesia do Pensamento e penso como é preciso quem, como George Steiner, ponha os outros todos a conversar legivelmente entre si.

27 de fevereiro de 2023

Jagten (A Caça) (2012) Dir. Thomas Vinterberg

Neste filme a trivialidade gela qualquer hipótese de transcendência, deixando-nos reféns de cada facto, momento, pronúncia, olhar, que se sucede, na minuciosa, mas orgânica, construção dramática. Decerto a cada cena somos apunhalados pela lisura do que é terreno e mundano, e por isso rochoso e agreste. E é da própria expectativa que nasce a confirmação das jogadas humanas — porque o que não se espera era exactamente o que esperávamos, ainda que nos exija uma outra forma de aceitação, uma certa compreensão, sem ideais, sem heróis ou anti-heróis, sem moralidade, porque cada coisa reside já para lá dessas projectadas ilusões — resta a subtil pedra fervente que tomou o lugar do nosso estômago.