19 de março de 2023

Pinguim

Os convivas indagavam antros interiores com a mesma implacabilidade com que a música das palavras constelava a mais inexprimível alegria. Espaços estendiam-se em busca de outros espaços, ardores estendiam-se em busca da partilha e da solidão. É por isso que certas coisas, livres e transcendentes, ocorrem em cheio na impossibilidade de as situar. Às duas da manhã, cantávamos o Cançoninho todos juntos, em círculo, de braços pousados nos ombros dos sobreviventes da madrugada. Mesmo se virgens daquelas andanças, podíamos ir até lá, devagar, a passo reticente de intruso, alguém levantava o braço para nos abrir espaço e encaixávamos no elo humano a fingir as palavras que não sabíamos. As iminentes gargalhadas não se distinguiam da comoção. Como não sei. Algum segredo impartilhável todos ali partilhavam. Já não íamos ao Pinguim há uns anos. O que reencontrámos ontem ? A irrepetição? É inútil perseguir a memória. Talvez o modus litúrgico venha cedendo ao formalismo. Talvez a poesia venha envelhecendo junto com o resto. O vinho, porém, permanece indecifrável dentro do seu igual. Ao menos o vinho.