27 de fevereiro de 2023

Jagten (A Caça) (2012) Dir. Thomas Vinterberg

Neste filme a trivialidade gela qualquer hipótese de transcendência, deixando-nos reféns de cada facto, momento, pronúncia, olhar, que se sucede, na minuciosa, mas orgânica, construção dramática. Decerto a cada cena somos apunhalados pela lisura do que é terreno e mundano, e por isso rochoso e agreste. E é da própria expectativa que nasce a confirmação das jogadas humanas — porque o que não se espera era exactamente o que esperávamos, ainda que nos exija uma outra forma de aceitação, uma certa compreensão, sem ideais, sem heróis ou anti-heróis, sem moralidade, porque cada coisa reside já para lá dessas projectadas ilusões — resta a subtil pedra fervente que tomou o lugar do nosso estômago.

24 de fevereiro de 2023

Crítica a um filme indizível, assistido no Cinema Trindade

Ontem, no Cinema Trindade, assisti, como nunca antes, a duas lentas horas de purga da humanidade. O (também mudo) imperativo poético do cineasta logrou calar todas as vozes, todas as faces, numa lenta, muito lenta, asfixia do outro. Dir-se-ia sadismo não fora pelo seu notório desinteresse — a câmara é neste filme um olho a tal ponto desapegado que só nos mostra o que lhe mostra a sua cegueira — em que as personagens (não vistas) são corpos que existem, suponho, por uma obrigação de género. Mas uma personagem não é um instrumento. Uma personagem é o desconhecido a conhecer-se, alguém que vive, que sobrevive, apesar de tudo, à sua latente morte. Tais existências exigem cuidado e estima. Neste filme, o cineasta oferece-lhes logo um fim, muito distante da misericórdia porque nem dor sentimos na decapitação.

4 de fevereiro de 2023

Prefácio a projecto de edição do blog Amantes do Desvario

O sonho é um modo esquivo de estar. Diz Sophie: Meus Senhores, venham ao meu sonho, conhecer-me! A sinceridade do apelo resiste à impossibilidade da comunhão. Sophie dá corpo ao encontro, mas não espera que a sigam pelo bravio onde jazem as suas palavras. Quereria? É o próprio formato – o blog – o veículo da fuga: a água corre anónima sob a amplitude do mar, aberto e livre. Para aqui vem Sophie galgando paredes, os olhares, as horas, e onde a poesia pode ser o impulso do que lhe é mais íntimo: a dúvida flagrante. Da dúvida inquire personagens sem nome e sem resposta, ainda que as defina o concreto ou até o espelho, e nelas verte pensamentos tão claros como escuros, tão lúcidos como sulcados, tão seguros como erráticos. Mas Sophie deseja esta liberdade, esta solidão.

Como se divisam fugas também se saram esperanças, e é no meio destes dois esforços onde Sophie descobre a linguagem do seu futuro. Porque o futuro ela traz no porão da imaginação e vive-o mesmo antes do naufrágio. Talvez Sophie nos ensine a humildade necessária ao crescimento. Talvez nos mostre como comungar da saudade e do fado, no uno de nós. Talvez nos indique que sentido dar à morte.

Mas o que talvez melhor nos ensina, precisamente por ser incomunicável, é o seu silêncio. Porque tem em si a bondade para fora e a tristeza para dentro. Sophie pede sem exigir, inquire sem fender, afirma sem proclamar. Que do dever brota a devoção, da mágoa a música, da condição a resistência. É o poeta-mulher, ou a poeta-não-homem, a quebrar o sentido fictício e faccioso da silente entropia do real. E sê meu sonho mais verdade, grita Sophie, a um transeunte, a um amante ou a si mesma, tão caladamente como o bater das asas do mundo. A sua abnegação é ser o fim, por quem ama, pela humanidade.

A esse limiar chegou Sophie muito cedo, num domingo de 2014: Caminho trilhado à margem, Corpo que desatento, Se deixou vazio por dentro, Sem memória da viagem... e aí permaneceu em silêncio desde então. Que abismo ou que céu terá ficado a contemplar? A que completude pode aspirar a mais sábia das liberdades? Não sabemos. Nunca soubemos. A poesia de Sophie era-nos água por entre os dedos, e nunca suspeitámos da torrente que nos havia encharcado as mãos.

A nós apenas resta a humildade, que antecede o conhecimento. Permissora da redenção. Esclarecedora do espaço que nos separa do eterno.

Mas perante o inalcançável, não é vão estendermos a mão. Porque poderá sempre haver quem veja e repita o gesto e se maravilhe, como nós, com aquela imensa distância. Com estas mãos fazem-se casas, fazem-se livros, alguma justiça. Com estas mãos constrói-se no mundo o mais nobre dos invisíveis. E é assim que se coligem estes fulgurantes desvarios de Sophie, não para que percam a liberdade conquistada, mas para que, no possível desta terra, encontrem enfim uma casa.