Ontem, no Cinema Trindade, assisti, como nunca antes, a duas lentas horas de purga da humanidade. O (também mudo) imperativo poético do cineasta logrou calar todas as vozes, todas as faces, numa lenta, muito lenta, asfixia do outro. Dir-se-ia sadismo não fora pelo seu notório desinteresse — a câmara é neste filme um olho a tal ponto desapegado que só nos mostra o que lhe mostra a sua cegueira — em que as personagens (não vistas) são corpos que existem, suponho, por uma obrigação de género. Mas uma personagem não é um instrumento. Uma personagem é o desconhecido a conhecer-se, alguém que vive, que sobrevive, apesar de tudo, à sua latente morte. Tais existências exigem cuidado e estima. Neste filme, o cineasta oferece-lhes logo um fim, muito distante da misericórdia porque nem dor sentimos na decapitação.
Não deverá ser a câmara mais um instrumento orgânico, que vive de acordo com as leis e dinâmicas dos homens? Que intervém? A sua absurda fixação poderá ser por natureza invasiva, quiçá violadora, mas é apenas no cinema que esse olhar, que parte do excesso em busca do excesso, encontra o privilégio do perdão. Não estou seguro de que o cineasta queira ser perdoado, sequer compreendido.
Neste filme, nada serve para nada, mas tudo serve para preencher um vazio que sempre permanece, porque a utilidade poderá adornar a arte, mas não a constituir. Nessa utilidade sondei pela inexistente visão crítica, não só social, política e existencial, mas também a poética que parecia querer elevar-se a primeiro plano. Aconteceu ser a poesia de um sonho cansado, irrepousável, figurativa e literalmente escura, em que as palavras eram sombrios murmúrios na cena deserta. Pensei assistir ao marasmo autista do criador na eterna contemplação da sua obra, em que a originalidade do seu pecado reside na autoconsciência, sabendo-se e chorando-se, ao largo da imaginação dos homens, pelo seu eterno não-retorno. Quem, naquele mundo, semi-criado à ínfima imagem do mistério, devolver o olhar aos céus à câmara, será apunhalado pela maior (e menos original) das traições: o frio e inapelável abandono.