19 de novembro de 2024

Zeca Afonso e os Séculos

Repudio o conceito de vanguardismo e sucessivas tentativas de o justificar, mas, usando-o, ao menos que se o atribua a coisas realmente irrepetíveis por surgidas e existindo naquilo a que podemos chamar irreal — não por vidência, clarividência ou adiantamento face ao que há, mas por não se achar em qualquer parte do tempo.

É no Zeca Afonso em que penso. Ser-me-ia impossível explicar o que faz deste compositor um dos maiores, ao lado de Mozart, Stravinsky ou McCartney. Periscópios neurais ou alquímicos terão em comum para descobrirem com tal claridade a linha turva do horizonte. Será uma intuição «intemporal» ou «universal», como se escutassem em si mesmos a demais humanidade, a que existe, a que virá? Na ânsia de haver o que se responda, dizemo-los profetas ou videntes, e, por excesso (ou inabilidade) de pensar o que não somos, imaginamo-los lacerados pela solidão da «genialidade», anjos caídos na selva de nós. Mas o Zeca Afonso, como todos os génios, não foi realmente génio: ou, pelo menos, não o foi sozinho: nele consolidaram-se as sensibilidades afinadas de um José Mário Branco ou de um Fausto Bordalo Dias, que escutaram com os ouvidos de Orfeu a intuição cantante de um homem, transfazendo-o na severa possibilidade da reprodução. Aquela estranha solidão, que é afinal simples música, não se mata, mas alivia-se.

8 de novembro de 2024

As leis obscurecem o pensamento, lembram as horas contidas em ostensórios imaginosos — a liminaridade oposta à mesma liminaridade — a espera que se detém na espera de outra espera, porém distintamente opaca, o bastante para que o mundo se refaça em nós e a longevidade se torne branca como pó das estrelas.
«Lamento tão pouco livro para tanto tempo» — li assim a dedicatória mais ou menos ilegível de uma coletânea do Eugénio de Andrade oferecida a Herberto Helder, em depósito na Biblioteca Palácio de Galveias. Os manuscritos têm essa qualidade enfabuladora do mistério, como se uns quantos caracteres crípticos contivessem a largura do universo. A incorreção da leitura, porém, não lhes retira beleza.

4 de novembro de 2024

Foram imagens que são imagens e que agora doem por não serem as mesmas, se assim posso veicular o suposto sentido da tragédia. E quem chora? Quem ri? Quem concatena vestígios na passagem do tempo?