Repudio o conceito de vanguardismo e sucessivas tentativas de o justificar, mas, usando-o, ao menos que se o atribua a coisas realmente irrepetíveis por surgidas e existindo naquilo a que podemos chamar irreal — não por vidência, clarividência ou adiantamento face ao que há, mas por não se achar em qualquer parte do tempo.
É no Zeca Afonso em que penso. Ser-me-ia impossível explicar o que faz deste compositor um dos maiores, ao lado de Mozart, Stravinsky ou McCartney. Periscópios neurais ou alquímicos terão em comum para descobrirem com tal claridade a linha turva do horizonte. Será uma intuição «intemporal» ou «universal», como se escutassem em si mesmos a demais humanidade, a que existe, a que virá? Na ânsia de haver o que se responda, dizemo-los profetas ou videntes, e, por excesso (ou inabilidade) de pensar o que não somos, imaginamo-los lacerados pela solidão da «genialidade», anjos caídos na selva de nós. Mas o Zeca Afonso, como todos os génios, não foi realmente génio: ou, pelo menos, não o foi sozinho: nele consolidaram-se as sensibilidades afinadas de um José Mário Branco ou de um Fausto Bordalo Dias, que escutaram com os ouvidos de Orfeu a intuição cantante de um homem, transfazendo-o na severa possibilidade da reprodução. Aquela estranha solidão, que é afinal simples música, não se mata, mas alivia-se.
E é justamente essa simplicidade que opera no sangue quando do monólogo da Grândola de súbito canta o mundo inteiro, mesmo sem saber as palavras, por ser ímpeto anterior às línguas, ao tempo, à diferença. Compreende-se, então, que nas suas composições a aridez alentejana seja afinal lucidez: uma luz muito aberta a unificar o espaço habitado por cada um de nós, de Portugal a Espanha a África. A sua terra é plural. Terra do fruto, das mãos, da comunhão. Terra sem fronteiras. Dessa liberdade alimentou as suas composições, fazendo-as nem daqui nem doutro lugar. Isso revelou-se apodíctico nos discos da primeira metade da década de 70, em que ousou exprimir, de um só golpe, o lirismo de Camões, a audácia dos The Beatles e a opulência em devir de toda a arte que haveria ainda para ser feita. Nessa senda ecuménica alcançou ainda incluir construções menos hínicas, mais árduas (digamos: subtis), em que a melodia conserva a facilidade da água encontrando o indeclinável caminho pela topografia harmónica, numa procura e inesperado encontro de sentido. Quiçá em extremo essa topografia se revele agreste e instável montanha, como em Tenho um Primo Convexo, que nem por isso vê perdida a destreza mnemónica de se instalar confortavelmente nos ouvidos do mundo, e sem que o experimentalismo, o surrealismo ou a dissonância, arruínem as possibilidades infantis do troteio. E isso é notável.
O Zeca Afonso lutou como soube e como quis. Como músico-militante, teve a coragem, a necessidade, de se misturar em si mesmo, sem separar os sangues. Foi por isso canonizado como um punho de Abril, o que, não sendo descabido, é injusto. Porque é uma condecoração que o peito enverga absolutamente, nada mais deixando visível. Nem sequer as suas letras confessionais, como em Que Amor Não Me Engana ou em Balada de Outono, escapam à coacção de uma analogia política. E na História não cabem muitas verdades, muito menos os seus cambiantes e silêncios. Isso revela-se claro nas cíclicas comemorações do 25 de Abril que todos os anos o reduz à voz da intervenção ou, nas piores circunstâncias, a banda sonora de feriado. A utilidade do símbolo é essencial, naturalmente, mas até um cravo perde a sua liberdade separado da terra.
Para mim, a virtude do Zeca Afonso não reside na sua obra política, que a há, mas na sua obra musical, despoluída do seu sentido de intervenção, de dever ou de justiça de classes. A cantiga pode ser uma arma, mas a música é o que acontece quando nada mais resta, depois de dissipado o ruído, o grito, o sentido útil de um tiro. Ainda que a luta seja eterna, é num espaço fora de qualquer grandeza, na planície lavada da batalha, em que encontro a música do Zeca Afonso. E dentro dela, em todas as direcções, séculos, séculos, séculos.