17 de dezembro de 2023

Vitalina Varela (2019) Dir. Pedro Costa

Filme quieto, em sentido duplo: fotográfico e pensado. Se a dor se revelasse em imagem seria a da escuridão que circunda o pensamento, em que a mínima luminosidade, a débil figura, o grave contorno, significam a réstia de vida e de esperança — a luz minga ou cresce? Não é estranho que o filme busque a estética do sonho, do pesadelo ou da memória, porque é precisamente nesse segundo mundo em que aparece decantada a miséria e, porque a há sempre, a beleza.


21 de julho de 2023

Unir o sentir à manufactura. De que outro modo se pode fazer arte? Aborrece-me que muita gente se ponha em frente da sua própria obra com a convicção da sua importância. No limite só o contrário é suportável porque um autor deve dar-se ao que possibilita vir ao mundo precisamente porque só ele o pode possibilitar. Usar da obra como adereço ou halo que o adorne é reduzir-se à obra, nula e alheia, de que se apropria. 

17 de junho de 2023

Sociedade Civil de ontem na RTP2 sob o mote “Ser bom, chega?” (no sentido prático-profissional, não moral). Nesta discussão, avieram a educação infantil com a performance profissional como se uma levasse à outra e como se ambas reflectissem o mesmo objecto. Conclusão obtusamente uníssona dos partícipes: não é preciso ser bom para ser bom; a pressão para se ser bom é má porque desmotiva o impulso ou vontade para se ser bom, a coacção tem de ser portanto “apenas” tácita, porque tem de ser a criança ou o trabalhador a “querer” ser bom; se não quiser ser bom, deve-se-lhe mostrar que tem de ser bom, sem qualquer coacção, naturalmente.

2 de junho de 2023

Onde e quando nos pomos no fim mais último? — morrer é morrer-se num lugar e numa data, um concreto mítico que em nós vamos incorporando. O fecho da narrativa contada, o começo da narrativa eternamente emudecida: a da terra, a do corpo, a do pó.

29 de maio de 2023

A «magia» «naif» (ambos com ásperas aspas) deve-se a alguma impensabilidade (aqui sob uma lente foucaultiana —  da ordem pelas formas). O vazio da técnica não adquirida é preenchida pelo impulso do saber e do fazer, enquanto parcelas ainda não aglutinadas em saber-fazer.

Menor mediação da segurança hierárquica do conhecimento.

26 de abril de 2023

Fomos ver o filme Oito Montanhas, baseado num livro do escritor italiano Paolo Cognetti. Tentei pensar no que dizer, mas as palavras ficaram lá em cima, no refúgio subterrado do pensamento.

1 de abril de 2023

R. Barthes, a propósito do seu teatro contemporâneo sumariza que o estilo é uma técnica de evasão. E é quase inevitável a pouco obrigatória analogia com a própria humanidade (com o ser humano, especificamente), que é feita de corpo e de espírito. O corpo pode ser fachada, mas nunca humilde ou honesto quando nele não transpira a verdade do que contém. Tenho assistido com cada vez mais clareza a facilidade (e a imperatividade) com que alguém pode migrar de um corpo para outro. Claro, os mais cuidadosos tecem esmeradas justificações ao abandono da antiga carcaça, ou para se eximirem de culpas e abrir espaço ao recálculo da sua situação. Se se pode pensar num modo não-sistémico, a validação dos outros acaba por ser secundária face ao desejo de harmonia interior-exterior, a uma paz consigo mesmo.

19 de março de 2023

Pinguim

Os convivas indagavam antros interiores com a mesma implacabilidade com que a música das palavras constelava a mais inexprimível alegria. Espaços estendiam-se em busca de outros espaços, ardores estendiam-se em busca da partilha e da solidão. É por isso que certas coisas, livres e transcendentes, ocorrem em cheio na impossibilidade de as situar. Às duas da manhã, cantávamos o Cançoninho todos juntos, em círculo, de braços pousados nos ombros dos sobreviventes da madrugada. Mesmo se virgens daquelas andanças, podíamos ir até lá, devagar, a passo reticente de intruso, alguém levantava o braço para nos abrir espaço e encaixávamos no elo humano a fingir as palavras que não sabíamos. As iminentes gargalhadas não se distinguiam da comoção. Como não sei. Algum segredo impartilhável todos ali partilhavam. Já não íamos ao Pinguim há uns anos. O que reencontrámos ontem ? A irrepetição? É inútil perseguir a memória. Talvez o modus litúrgico venha cedendo ao formalismo. Talvez a poesia venha envelhecendo junto com o resto. O vinho, porém, permanece indecifrável dentro do seu igual. Ao menos o vinho.

14 de março de 2023

A Pior Pessoa do Mundo (2021) Dir. Joachim Trier

Contribui para a coerência da problemática feminina ao desdobrar a discussão para longe do feminismo enquanto posição política. Porque é preciso mais discurso, naturalmente, não sobre a luta da mulher contra o homem, que é uma binariedade sem compromisso possível, mas sobre a mulher contra si mesma, enquanto membro singular de um colectivo, feito de homens, mulheres e fantasmas.

8 de março de 2023

Leio Poesia do Pensamento e penso como é preciso quem, como George Steiner, ponha os outros todos a conversar legivelmente entre si.

27 de fevereiro de 2023

Jagten (A Caça) (2012) Dir. Thomas Vinterberg

Neste filme a trivialidade gela qualquer hipótese de transcendência, deixando-nos reféns de cada facto, momento, pronúncia, olhar, que se sucede, na minuciosa, mas orgânica, construção dramática. Decerto a cada cena somos apunhalados pela lisura do que é terreno e mundano, e por isso rochoso e agreste. E é da própria expectativa que nasce a confirmação das jogadas humanas — porque o que não se espera era exactamente o que esperávamos, ainda que nos exija uma outra forma de aceitação, uma certa compreensão, sem ideais, sem heróis ou anti-heróis, sem moralidade, porque cada coisa reside já para lá dessas projectadas ilusões — resta a subtil pedra fervente que tomou o lugar do nosso estômago.

24 de fevereiro de 2023

Crítica a um filme indizível, assistido no Cinema Trindade

Ontem, no Cinema Trindade, assisti, como nunca antes, a duas lentas horas de purga da humanidade. O (também mudo) imperativo poético do cineasta logrou calar todas as vozes, todas as faces, numa lenta, muito lenta, asfixia do outro. Dir-se-ia sadismo não fora pelo seu notório desinteresse — a câmara é neste filme um olho a tal ponto desapegado que só nos mostra o que lhe mostra a sua cegueira — em que as personagens (não vistas) são corpos que existem, suponho, por uma obrigação de género. Mas uma personagem não é um instrumento. Uma personagem é o desconhecido a conhecer-se, alguém que vive, que sobrevive, apesar de tudo, à sua latente morte. Tais existências exigem cuidado e estima. Neste filme, o cineasta oferece-lhes logo um fim, muito distante da misericórdia porque nem dor sentimos na decapitação.

4 de fevereiro de 2023

Prefácio a projecto de edição do blog Amantes do Desvario

O sonho é um modo esquivo de estar. Diz Sophie: Meus Senhores, venham ao meu sonho, conhecer-me! A sinceridade do apelo resiste à impossibilidade da comunhão. Sophie dá corpo ao encontro, mas não espera que a sigam pelo bravio onde jazem as suas palavras. Quereria? É o próprio formato – o blog – o veículo da fuga: a água corre anónima sob a amplitude do mar, aberto e livre. Para aqui vem Sophie galgando paredes, os olhares, as horas, e onde a poesia pode ser o impulso do que lhe é mais íntimo: a dúvida flagrante. Da dúvida inquire personagens sem nome e sem resposta, ainda que as defina o concreto ou até o espelho, e nelas verte pensamentos tão claros como escuros, tão lúcidos como sulcados, tão seguros como erráticos. Mas Sophie deseja esta liberdade, esta solidão.

Como se divisam fugas também se saram esperanças, e é no meio destes dois esforços onde Sophie descobre a linguagem do seu futuro. Porque o futuro ela traz no porão da imaginação e vive-o mesmo antes do naufrágio. Talvez Sophie nos ensine a humildade necessária ao crescimento. Talvez nos mostre como comungar da saudade e do fado, no uno de nós. Talvez nos indique que sentido dar à morte.

Mas o que talvez melhor nos ensina, precisamente por ser incomunicável, é o seu silêncio. Porque tem em si a bondade para fora e a tristeza para dentro. Sophie pede sem exigir, inquire sem fender, afirma sem proclamar. Que do dever brota a devoção, da mágoa a música, da condição a resistência. É o poeta-mulher, ou a poeta-não-homem, a quebrar o sentido fictício e faccioso da silente entropia do real. E sê meu sonho mais verdade, grita Sophie, a um transeunte, a um amante ou a si mesma, tão caladamente como o bater das asas do mundo. A sua abnegação é ser o fim, por quem ama, pela humanidade.

A esse limiar chegou Sophie muito cedo, num domingo de 2014: Caminho trilhado à margem, Corpo que desatento, Se deixou vazio por dentro, Sem memória da viagem... e aí permaneceu em silêncio desde então. Que abismo ou que céu terá ficado a contemplar? A que completude pode aspirar a mais sábia das liberdades? Não sabemos. Nunca soubemos. A poesia de Sophie era-nos água por entre os dedos, e nunca suspeitámos da torrente que nos havia encharcado as mãos.

A nós apenas resta a humildade, que antecede o conhecimento. Permissora da redenção. Esclarecedora do espaço que nos separa do eterno.

Mas perante o inalcançável, não é vão estendermos a mão. Porque poderá sempre haver quem veja e repita o gesto e se maravilhe, como nós, com aquela imensa distância. Com estas mãos fazem-se casas, fazem-se livros, alguma justiça. Com estas mãos constrói-se no mundo o mais nobre dos invisíveis. E é assim que se coligem estes fulgurantes desvarios de Sophie, não para que percam a liberdade conquistada, mas para que, no possível desta terra, encontrem enfim uma casa.