30 de setembro de 2018

Vou a três quartos do Jerusalém do Gonçalo M. Tavares. O primeiro livro que deste autor leio. Tem sido de uma prosa comedida, controlada, cinzentamente poético, nunca se distanciando da própria origem do pensamento. A sua preocupação primeira é a consolidação arquitectónica do mundo interior da narrativa e das personagens. A sucessão dos factos, (quase) arbitrariamente colocados em não linearidade temporal, vai readquirindo a força própria que há depois de cada destruição: a da reconstrução. Preciso de uma leitura completa para entender a total essência da sua motriz criativa. É um livro que vai exibindo, quietamente, o fulgor fantasma de um edifício robusto, na distância, em construção. Por isso aguardarei pelo final. Desta obra mais nada direi porque eu, pelo contrário, não possuo o talento da culminação. Não saberia resolver a minha opinião. Uma opinião ao nível desses píncaros. Sinto-me um conjunto disperso de finais sobrepostos, cá mais em baixo. 

28 de setembro de 2018

Não pretendo borrar-me todo em miopias analíticas nem mostrar-me hiper-consciente do que realizo, mas não há forma mais coerente de lidar com o assunto quando assoma a branca limpidez do papel-tempo e a sua alvura é já um desejo irrenunciável à pretendida maior lucidez do discurso. O rei vai nu, mas não abdica nunca.

21 de setembro de 2018

Escrever com base num conceito é uma tentativa constante de resolução. São na verdade resoluções sucessivas e cada qual tenta-se que seja a última. 

20 de setembro de 2018

Alguns ajustes ao Suicídio de José. Não estou a gostar do final. 

Acordei com a cabeça metida em névoa. Não é fácil pensar. O sol é forte e claro, mas não torna o dia mais legível. 

14 de setembro de 2018

O Suicídio de José tem algo de tântrico.

13 de setembro de 2018

Biblioteca. Ainda Vergílio. Ler é impossível sem poder estancar as torrentes de palavras que se vão sucedendo. E fico assim sentado a olhar para elas por dentro de fora para dentro por fora, à procura do seu sentido máximo, do seu ponto último. Deixo-me cair em tentação de não ler uma frase naquele impossível sem tempo que convém à descoberta de todas todas as possibilidades. Infelizmente a leitura é o acto excelente de perpétuo avanço, de efemeridades, do correrio louco de chegar ao ponto mais final que, por ser o último, ilude-nos com a satisfação de que tudo já possa estar escrito e lido.

Resumindo: obedeço assim a um simples aforismo: verdade e sentido são realidades absolutamente diferentes.

12 de setembro de 2018

Tenho vindo à biblioteca Almeida Garrett para ler, escrever, estar. Trata-se de uma biblioteca de um soalho levíssimo, rangente por debaixo dos passos, quase de anti-biblioteca. Caminhando, obriga, invoca, estimula em mim a autoconsciência de mim. Merda. Creio violentamente que os outros usuários ficam corrompidos pela minha passagem, por dentro do seu espaço interior de estudo. 

Cada passo dói mais alto do que é.

Leio o livro do Vergílio Ferreira. E penso em como ele nunca seria capaz de vencer qualquer prémio internacional de prestígio. Talvez nem faça sentido ser lido fora dos países de língua portuguesa. O Vergílio só é total dentro dela. As línguas exigem traduções destotalizantes. A obra de Vergílio vive da sua inteireza, daquela que existe desde lá e ainda lá no cárcere puro da criação. E ainda bem.

9 de setembro de 2018

Feira do livro no palácio de cristal. Encontrei edições gastas, e destituídas a cinco euros, do Em Nome da Terra do Vergílio Ferreira. O mercado livreiro diz que este exemplar vale menos porque já não lhe está fresca a memória do prelo e porque já foi gasto por outros olhos. Mas alegra-me que, apesar dessa triste lei mercantil, todas estas sequências de palavras ainda coincidam com aquelas escritas por Vergílio e que, por segunda coincidência, seja apenas isso que eu dele deseje. A arqueologia de um livro revelar-nos-ia a sua verdadeira vida, na estrita literatura, sob a fisicalidade da casca editorial.

8 de setembro de 2018

Trabalho num conto a que se vão juntar outros ainda vagos. Estou incerto de que nome lhe poderei atribuir, e muito mais do desenvolvimento de que possa precisar. Dei-lhe a forma de um diário não datado — curtos lapsos de registo, aleatórios. Trata-se de um homem a quem obrigam confrontar a sua vida, toda ela escrita. O tempo, inexistente, não é impedimento à tarefa, embora o possa ser à sua higiene existencial. Estão dois procuradores do outro lado da secretária que conduzem o processo. Este é, na verdade, de uma instrução simples: o homem deve assinar o termo de responsabilidade depois de lida e discutida a sua vida. Não há prazo para o fazer. Não há certezas do que possa suceder. Há uma porta por onde se poderá sair. Viajar pelo escritório alterará perspectivas. Talvez o homem nunca saia, nunca assine. Pelo menos, durante o tempo da narrativa. Depois dela, a eternidade é só sua.

7 de setembro de 2018

— De que medida é a responsabilidade do escritor?
E de novo eu:
— Olhe, recuso-me a cultivar a ideia de classe. A responsabilidade da escrita é a da, e por uma, auto-responsabilização, como em qualquer atividade solitária. Um escritor (alguém que escreve) pode tanto marginalizar-se em si como noutro ou naquilo a que se designa consciência coletiva. Escrever a partir de um púlpito é coisa grave: é corromper cada palavra. A escrita é feita para dentro, onde, porventura reside toda a humanidade. Que ela ouça ou não é um efeito colateral da criação.

2 de setembro de 2018

Devo dizer (porque impõe-se aqui uma ética) que estes escritos não são substancialmente distintos de qualquer outro método formalmente distinto (e talvez não seja excessiva a hipótese da sua não diferença formal). Tudo intercala-se. As ferramentas interpolam-se. O sangue transfunde-se. Não pretendo um registo fresco dos dias que me sirva de prótese da memória ou de uma identidade engendrada autobiograficamente em torno de uma convicção que tenho ou que passaria a ter. Não espero encontrar-me ou mostrar-me. Não pretendo desbravar, aclarar, sintetizar. Nada atará o nó de quem sou. Nada será iluminação positivista do recalque, do silêncio ou da negação. Creio que nem a datação que precede estes parágrafos poderão denunciar uma forma ou desejo diarístico que não sinto nem tenho. Essa pretensão em princípio chocaria dolosamente, dolorosamente, com os tabiques da metáfora, da ignorância ou da mentira, cuja abundância prevejo no que sou no que serei. Biografia é um estado de espírito, é um olhar que entra de certo ângulo pelo vidro partido de uma catedral de espelhos e que pelo caminho se perde ou nos reencontra os olhos. O cinismo poderá informar-nos de que a biografia é inevitável — o mesmo cinismo poderá garantir fatalmente o oposto. E aos olhos da verdade, isso pouco importa.

Nada disto é sobre mim. Ninguém transcende a literatura.