Devo dizer (porque impõe-se aqui uma ética) que estes escritos não são substancialmente distintos de qualquer outro método formalmente distinto (e talvez não seja excessiva a hipótese da sua não diferença formal). Tudo intercala-se. As ferramentas interpolam-se. O sangue transfunde-se. Não pretendo um registo fresco dos dias que me sirva de prótese da memória ou de uma identidade engendrada autobiograficamente em torno de uma convicção que tenho ou que passaria a ter. Não espero encontrar-me ou mostrar-me. Não pretendo desbravar, aclarar, sintetizar. Nada atará o nó de quem sou. Nada será iluminação positivista do recalque, do silêncio ou da negação. Creio que nem a datação que precede estes parágrafos poderão denunciar uma forma ou desejo diarístico que não sinto nem tenho. Essa pretensão em princípio chocaria dolosamente, dolorosamente, com os tabiques da metáfora, da ignorância ou da mentira, cuja abundância prevejo no que sou no que serei. Biografia é um estado de espírito, é um olhar que entra de certo ângulo pelo vidro partido de uma catedral de espelhos e que pelo caminho se perde ou nos reencontra os olhos. O cinismo poderá informar-nos de que a biografia é inevitável — o mesmo cinismo poderá garantir fatalmente o oposto. E aos olhos da verdade, isso pouco importa.
Nada disto é sobre mim. Ninguém transcende a literatura.